Como humanos, nós nos reconhecemos como o topo da natureza por ter a capacidade única, entre os seres vivos, de poder analisar a circunstância que nos rodeia, fazer opções ou escolhas e agir para satisfazer as nossas necessidades.
Esse fenômeno representa o auge do exercício da nossa liberdade, capaz de nos fazer extrapolar limites, criar, construir ou reconstruir situações e contextos neste ir e vir contínuo da vida. É por meio dessa condição que vivemos os dilemas das decisões, caminhando entre a curiosidade e o conhecimento, entre a certeza e a dúvida, entre o viável ou o impossível, entre o desejado ou imperativo, e, em última instância, entre o viver ou morrer.
Para que a liberdade seja exercida, cada indivíduo terá que conseguir, em alguma medida, se conhecer, se entender, identificar em si mesmo a natureza que o habita e quais são as necessidades que o movem. Dessa forma, ele tomará decisões sobre o que acredita e o que quer defender, custe o que custar, ciente que é dessa defesa que depende a sua estima, a sua dignidade e, consequentemente, a sua vida.
A liberdade, como um ideal, nos conduz ao encontro de um estado de vida superior, no qual se exercitam os direitos e as regras, com o respeito ao outro, e também onde possamos expressar a nossa identidade. É o exercício fundamental para atender as necessidades vitais da nossa condição humana, que são:
– A necessidade de amor, de se sentir vivo, reconhecido, importante e aceito;
– Necessidade de conduzir o próprio tempo de vida, dar sentido e rumo à própria existência;
– Necessidade de saber, conhecer, ter informações úteis para decidir sobre os próprios dilemas;
– Necessidade de saber para o que serve, do que é capaz de fazer e qual o valor do que produz…
Mas, o que ocorre quando essas necessidades são desqualificadas e negligenciadas por alguém que se apresenta com um ser superior e dominante, e, ainda assim, entregamos a esse outro a resolução das respostas que a nossa essência busca?
O que leva um ser humano a ser propriedade de outro, aceitando ser dominado, conduzido e oprimido? A assistir um governante ditar palavras de ódio, opressão, discriminação e violência contra todo tipo de vida? E que, em pleno encontro mundial com as lideranças das principais economias do planeta, reunidas para debater sustentabilidade e políticas de contenção da pandemia, discursa de forma dissimulada celebrando feitos no controle da pandemia os quais o próprio vem atacando em território nacional? E mesmo assim, é aplaudido, defendido, enquanto que, pelas costas, pessoas estão sem emprego, passando fome, morrendo por serem consideradas desqualificadas?
Como dizer para elas que acordem, pois um terrível instrumento de exploração está apenas usando de sua servidão e tomando violentamente seu direito de viver e de ser livre?
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Encontro entre algoz e vítima
Voltando o olhar para nós, como indivíduo: a ponte para a dependência ou submissão começa a ser construída quando essas necessidades vitais da condição de ser humano passam a ser atendidas por meio de códigos e comandos fora da minha individualidade, cerceando gradativamente a capacidade de me perguntar: o que eu desejo? O que eu quero? Ou o que eu posso? A quem pertencem as ideias, os sentimentos, os receios ou medos, as ameaças ou as inconveniências?
Se essas necessidades não são minhas, tenho toda a capacidade de analisar, pensar e criar saídas, buscando ajuda e suporte nos outros. Entretanto, se me entrego aos outros, terei que cumprir as penas impostas pela transgressão ou o não cumprimento das expectativas deles, e ainda carregar, dentro de mim, a culpa, a desvalorização e o medo. Acorde! É dessa forma que algozes e salvadores surgem ao nosso redor, corroem a nossa liberdade e se apropriam sorrateiramente da nossa identidade.
Buscando as fórmulas de autorrealização
Como representação clara das inquietudes do nosso ser e busca por respostas, vemos que as palavras “empoderamento”, “presença” e “protagonismo” estão hoje no discurso popular. Elas refletem nada mais do que a urgência de fortalecimento da identidade por parte dos indivíduos, os quais, frentes à enxurrada de mensagens de autoajuda, padrões de excelência, estados de vida de felicidade, caminhos de realização pessoal e de carreira, dentre outras receitas, buscam cada vez mais, fora deles, as fórmulas de desenvolvimento, realização e evolução. Estão precisando de alguém que os digam o que e como fazer para conduzir suas vidas.
Mas, ao precisar de receitas e estereótipos de felicidade e sucesso a serem seguidos, corremos o risco de nos afastar das perguntas-chave a respeito da nossa liberdade: quem sou eu? Quem é o outro? Quem somos nós e qual é o papel que nos cabe neste latifúndio?
O caos interno pessoal, ou externo em grupos e sociedade, se instala quando essas perguntas são esquecidas e respondidas por partes ou por interesses dos algozes ou manipuladores.
A violência instalada contra a liberdade
A ferramenta mais poderosa para cercear a liberdade é a desqualificação. Ao retirar sistematicamente o verdadeiro valor das pessoas, das situações ou de qualquer outra coisa, essa desqualificação cria o sentimento de incapacidade e fere a autoconfiança.
Exemplo disso é como as pessoas que fogem de seu país, em busca da sobrevivência, são representadas como desimportantes quando, na verdade, elas estão realizando um ato heroico. Porém, ninguém aplaude esse heroísmo, ninguém ajuda ou quer saber. São tratadas como desqualificadas, como alguém que merece pagar os custos de sua decisão.
E as ferramentas para a desqualificação são muitas: quando alguém mente, sonega ou distorce uma informação, compartilhando fake news, parte do pressuposto de que quem recebe é incapaz de descobrir a mentira ou fazer algo para revelar a verdade. Quando alguém ignora, isola ou discrimina alguém, está avisando a todos sobre a pouca importância dessa pessoa. Quando superprotege ou se coloca como salvador, está dizendo que o outro é incapaz de agir por si mesmo. Quando cria e mantém contextos persecutórios, acusa sem provas e quebra os acordos. Dessa forma, está falando ao mundo sobre a incapacidade do outro de ter, ao redor, pessoas confiáveis, assim como dele poder decidir, solucionar, criar e agir para obter novas condições de vida para si mesmo e para os demais.
Quando se maximiza o poder de alguém, é seguido sem questionamento e a ele são atribuídos poderes e qualidades inexistentes, elogios e admiração que fazem curvar a espinha, ficando completamente entregue à servidão e vivendo, plenamente, a perda da liberdade.
Esse mecanismo manipulativo gera e mantém a dependência, a servidão e a vitimização, e impossibilita o encontro da plenitude de uma pessoa, de uma família e de uma sociedade. É assim que vemos surgir, com intensidade, o medo, a desconfiança, a apatia, a agressividade, a violência e as condutas destrutivas.
Podemos observar esse mecanismo em ação nas situações de violência urbana, na agressão à mulher, nas disputas políticas, no racismo, na destruição da natureza, entre outras barbáries. Ou na convivência individualista diária, nas relações interpessoais conflituosas, no trabalho sem sentido ou significado, e também dentro de si mesmo. Ao desacreditar da própria sabedoria, justifica-se e dá desculpas por ter deixado de decidir ou fazer algo fundamental para si mesmo.
No entanto, por meio da prática do autoconhecimento, é possível analisar quais são as próprias fraquezas, como e porque deixa-se fisgar, e quais os comportamentos que sustentam esse acordo tácito entre manipulado e manipulador. Terá clareza dos custos que está disposto a pagar ou não para ter a identidade que deseja e cumprir os próprios valores e visão de vida.
O autoconhecimento nos leva a ter compreensão e aceitação das diferenças entre os indivíduos, a conectar-se com as necessidades comuns, a trocar e dividir responsabilidades entre eles na busca do bem-estar e felicidade do todo. É justamente um movimento oposto ao que é pregado atualmente pelo atual chefe da nossa nação.
A necessidade de equilíbrio para o dilema central “segurança X liberdade” estará sempre presente, o que nos desafia a fazer escolhas e tomar decisões conforme as circunstâncias e as necessidades. Com isso, podemos seguir dois caminhos: se acomodar, negar, isolar, acusar e agredir para não perder; ou agir a partir da escolha entre estas questões:
– Saber o que devo e preciso fazer, ou fazer o que desejo e também é conveniente fazer;
– Dizer ao mundo o que acredito e tenho certeza, ou declarar meu pensar criativo e ouvir do mundo o conhecimento útil para solucionar os problemas;
– Seguir padrões predeterminados, ou agir dentro daqueles recriados e atualizados por mim;
– Entregar resultados para alguém que impõe, ou colher resultados desejados construídos por todos;
– Esperar recompensa e reconhecimento para comportamentos esperados, ou compartilhar e celebrar benefícios;
– Garantir e aferir o certo ou errado, ou manter os questionamentos que me levarão para um novo ciclo criativo.
Diante todas essas questões, há um caminho inexorável para a plenitude do nosso ser: será o exercício de escolhas baseadas no amor que dará o tom e o tamanho da liberdade em nossos diferentes papéis de vida. Para isso, como humanos, precisamos da igualdade de condições de bem-estar, de uma vida plena e saudável. E para atingirmos essa igualdade, precisamos ser diferentes, com a liberdade do nosso ser.
Rosa Bernhoeft
Por Rosa Bernhoeft
Especialista em liderança e gestão de altos executivos, sócia-fundadora da Alba Consultoria, criadora de conceitos e metodologias para gestão de carreira, treinamento e desenvolvimento.